domingo, 29 de março de 2009

Violência e a ausência das Instituições Formativas (Entrevistas e Debates)


"O aumento da violência e da criminalidade em nosso convívio social , indica como a sociedade capitalista é tirânica e radicalizadora, tanto com quem mata, como com quem é morto, é uma mão de via dupla a relação vítima e vilão, a expressão que estamos caminhando para a barbárie."
Antonio Mateus Soares- Sociólogo




" A violência contemporânea, sobretudo àquela que acomete o jovem e adolescente, se figura como uma flagrante ausência das instituições formativas: FAMÍLIA & ESCOLA, que não conseguem por inúmeros motivos cumprir seu papel educativo, humanistico e socializador. Tal ausência se associa a questões econômicas que excluem e maltratam um parcela significativa de nossos jovens" (Sociólogo - Antonio Mateus Soares).







As múltiplas interpretações sobre a violência

(Livro lançado em 2004, Coord. Gey Espinheira,no qual participo com o artigo Juventude e violência).

SOCIABILIDADE E VIOLÊNCIA

A violência: os conceitos de violências têm sido propostos para falar de muitas práticas, hábitos e disciplinas, de tal modo que todo comportamento social poderia ser visto como violento, inclusive o baseado nas práticas educativas, tais como na idéia de violência simbólica proposta por Pierre Bourdieu (2001). Para esse autor, a violência simbólica se realiza sem que seja percebida como violência, pois se insere em tramas de relações de poder naturalizadas. Como um fenômeno contingente a violência é socialmente produzida, pluricausal, multifatorial, uma ação que agride, maltrata e brutaliza a espécie humana, negando a política e a convivência social; a violência pode também ser compreendida como todo ato que implica na ruptura de um nexo social pelo uso da força.
As condições materiais de existência não são necessariamente as causas da violência, mas fatores contribuintes de elevado peso, na medida em que em locais e entre jovens de média e alta renda comportamentos violentos e formas de violência assemelhadas são registrados; mas, entre os jovens dos bairros populares estão os maiores índices de homicídios, sejam os executados por grupos de extermínio ou aqueles que resultam de enfrentamentos de galeras e gangues em defesa e em conquista de territórios bem demarcados de atuação de traficantes de drogas ou de localização de grupos marginais organizados, também ou difusos, praticantes autônomos de furtos, roubos e assaltos; por fim, a banalização da morte como solução para conflitos.
O teorema de Thomas nos diz que “se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais em suas conseqüências”. Assim, configurando a realidade da vida cotidiana como um campo de conflitos que devem ser pessoalmente resolvidos, os jovens, mas também os adultos banalizam a violência e a transformam em meios efetivos de resolução de problemas.
FATORES: Diversos fatores influenciam o ingresso de jovens no mundo da violência e do crime, entre estes: a pobreza; as dificuldades de inserção no mercado de trabalho; a ausência da família; o desestimulo gerado pela instituição escolar; a falta de perspectivas; a cartelização expansiva da delinqüência e da droga; a impunidade e a perda de confiança na efetividade do sistema jurídico. Fatores que correlacionadas geram o bloqueio que se instaura em um contexto social opressor e de múltiplas carências. Os jovens nestes contextos de vulnerabilidade são capturados e lhe são impostos códigos de escolhas criados por um mundo que para Zygmunt Bauman (2000, p.26), “fabrica incertezas, inseguranças e falta de garantias; viver na incerteza revela-se um estilo de vida, o único estilo de vida possível, como tendência de uma ‘corrosiva desesperança existencial’”.
Incerteza, medo e risco, são situações presentes na vida dos jovens pobres das cidades brasileiras, especificamente, os que residem em bairros periféricos e precarizados pela ausência do poder estatal. Jovens que vivem em um contexto hostil de múltiplas carências e reincidentes fracassos, e que na luta pela sobrevivência são vulnerabilizados a encontrar como alternativa o investimento em práticas transgressoras, que repetidas se constituem em uma cultura de violência, dinamizada cotidianamente por um quadro de despossessões e pobreza. O jovem pobre é figurado como um “despossuido” de direitos de razões, e de suas próprias expectativas de futuro, ele faz parte de uma parcela da população que tem seu cotidiano marcado por diversas privações e angústias. A desqualificação social que chega a estes jovens são rebatimentos manifestos da perversa lógica do capital, que exacerba a exclusão e aumenta o negligenciamento da cidadania efetiva.
A juventude como uma etapa da vida em que os indivíduos deveriam ser preparados a assumir o papel dos adultos na sociedade, consolidando sua integridade moral e critica é negada. O jovem é privado de oportunidades para obter está preparação e se torna um adulto desprovido de condições instrumentais e cognitivas para se compreender e se fazer presente no mundo como um sujeito transformador. Tal situação que se reproduz em um ciclo de determinações e bloqueios faz parte da vida de milhares de jovens pobres.
Há um grande número de jovens que vivem um cotidiano dramático de privações, de humilhações e agressões, e que têm em mente “descontar” os constrangimentos a que são submetidos; outros tantos avaliam que “não tem nada a perder” e se predispõem a ações de risco como única alternativa possível para realizar seus objetivos. [...] Assim, impedidos de trabalhar, pois o sistema produtivo não oferece a chance do primeiro emprego – e isso se agrava com a precariedade da formação educacional, estes jovens se entregam a um ócio improdutivo e voluptuoso, no qual a presença de substâncias psicoativas é freqüente e em seguida se iniciam em práticas transgressoras como única saída para a obtenção de recursos.


terça-feira, 1 de julho de 2008

A invenção da realidade: Loucura e Mendicância

Por:. Vitor Pablo Jacobina

O triunfo da morte - Pieter Breugel


Vitor Pablo Jacobina - possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (2000). Atualmente é professor substituto do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Psiquiatria, atuando principalmente nos seguintes temas: neurocognição bipolar, psicofarmacologia, fluoxetina, tricotilomania, epidemiologia e agranulocitose.

Só podemos ver o mundo através dos nossos olhos. Esta frase óbvia ilustra bem as convicções apaixonadas e as animosidades que perpassam a troca de farpa entre o Movimento Anti-manicomial Brasileiro e setores da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O primeiro informa que o excesso de poder de clausura e intervenção sobre o sujeito que é dado ao psiquiatra se corrompe em sutil instrumento de opressão das individualidades. Principalmente das individualidades mais excêntricas e frágeis. Já alguns setores da ABP acusam o Movimento Anti-manicomial de propagar no SUS uma desospitalização brusca, anti-técnica, ideológica e produtoras de mendigos.

Em Salvador-Bahia: um lado denuncia as mortes e violências praticadas dentro dos manicômios públicos. O outro lado denuncia as mortes e violências acontecidas após a redução notável e brusca dos leitos psiquiátricos associada à abertura de número insuficiente de CAPS ineficazes. Enquanto debate-se uma saúde mental ideal e utópica na medida do possível, algumas importantes variáveis sociais, científicas e culturais parecem estar sendo esquecidas. A Psiquiatria parece que ainda levará décadas até abolir a necessidade de internamento compulsório em diversos quadros psiquiátricos agudos. No Brasil de 2008, talvez mais que em outros lugares, a elite se torna mais autista e cosmopolita, a classe média se proletariza, os proletários são pressionados a tornarem-se máquinas de trabalho progressivamente mais eficientes, e montanhas de “lixo humano” “indizível” continuam a ser produzidas. [Esquecer-se destas variáveis caotizantes no cálculo da redução de danos aos sujeitos da civilização é mostra de imprudência (com o real) e desumanidade].

Podemos exemplificar facilmente tal conjuntura: Caso um esquizofrênico (negro de classe D ou E) cronicamente sintomático e mal tratado mata seu pai com um golpe de capoeira, a família e a juíza mais próxima não terão mais paciência para cuidá-lo, nem existirá estrutura estatal para acolhê-lo com dignidade por prazo suficiente. Então, utilizarão um papel onde estará escrito o código da doença para transferí-lo do presídio ao manicômio judiciário. Dentro dos muros do manicômio será alimentado e tosado para evitar a infestação de piolhos, e será menos espancado que nas ruas, onde teria uma sobrevida menor e pior.

É uma situação realmente animalesca. Aliás, historicamente, os homens de bolsos e juízos mais fracos são mais facilmente animalizados que outros. Entre tanta sutileza, também aspiro ao ideal de uma saúde mental, mas me satisfaço com o menor dano possível no instante agora.

Mas aí dirão: “É melhor acabar vez com todo este antigo sistema desumano para induzir a formação de algum outro que fatalmente será melhor que este”. É, realmente, pimenta nos olhos dos outros é refresco. Tal frase, dita por um colega médico, é bastante característica do conceito de Brasil nas palavras de Darcy Ribeiro: “Máquina de desgastar gente”.

Os CAPSs têm sido responsáveis por um melhor acesso aos serviços de assistência à saúde mental, principalmente em alguns rincões do Brasil, onde a maioria dos psiquiatras, por serem criaturas eminentemente metropolitanas e litorâneas, tão facilmente não se dispõem a ir morar ou clinicar.

Os psiquiatras criticam a postura ideológica e passional dos setores mais radicais do Movimento Anti-manicomial, principalmente em questões óbvias como o ECT (Eletroconvulsoterapia: procedimento caro e praticamente inócuo que salva vidas e subjetividades), mas não aproveitam seu prestígio para denunciar situações escabrosas, tais como o fato de clinicas psiquiátricas conveniadas ao SUS receberem menos recursos financeiros caso realizem em suas instalações o salvador procedimento de Eletroconvulsoterapia. O que faz com que apenas o setor privado tenha acesso a tão caro e eficiente procedimento. Legítima prova de que ideologias burras (pouco esclarecidas) podem promover a exclusão e os maus-tratos daqueles que se propõem defender.

Com muito ou nenhum embasamento científico cada lado reinventa o real. O real de sua utopia. Quero crer que haja apenas interesses políticos excusos por trás de tanta ineficácia, porque padecer de burrice é um luxo que técnicos da área de saúde mental não se podem permitir.

De resto, gostaria de destacar que não sou o pensador mais liberto para analisar tais questões, nem o mais sábio, nem o mais poderoso, muito menos o mais verdadeiro. Mas permitam-me insistir no pedido por uma menor distorção da realidade periclitante dos portadores de transtornos mentais pelos técnicos a seu serviço. Afinal de contas, não podemos nos permitir a aventura de sermos loucos voluntários quando estamos administrando a vida de outras pessoas.

Só existe uma Psiquiatria, a especialidade médica, e ao lado dela diversas outras disciplinas e escolas de psicologia para abordar o sofrimento e alterações comportamentais dos indivíduos. Pois que os indivíduos são livros únicos, não existe um indivíduo igual a outro. Há mais de dois milênios repetimos Hipócrates: “Cada caso é um caso”. Não se pode queixar que nós médicos generalizamos demais. Em Psiquiatria menos ainda. Parafraseando o professor Del Nero: Cada sujeito-paciente é um livro que deve ser lido por nós. Nós, psiquiatras, somos “consertadores” de livros especializados em papel, tinta, edição, gramática, biografias, estéticas literárias, figuras de linguagem. Tentamos reparar livros-sujeitos para que sofram menos, para que funcionem melhor, e para que sejam mais eficientes na expressão de suas mensagens de vida.
Por que a ABP se ausenta de exercer seu papel pedagógico? Ela sabe que o estado brasileiro, como instrumento exemplar, ao invés de apenas fechar hospícios sucateados e desumanos, deveria também abrir leitos psiquiátricos suficientes nos hospitais gerais do SUS, deveria fazer constar psiquiatras e setores de psiquiatria nas emergências dos hospitais gerais do SUS. Pois que a Psiquiatria faz parte da medicina e, como todo o resto da medicina, ainda não evoluiu o suficiente para deixar de requerer o internamento nas fases mais agudas das doenças. Por que a ABP se cala e não brada por todos os lados que as escolas de medicina (nem todas) precisam ensinar aos seus médicos a não ressuscitar a dicotomia cartesiana: corpo-mente?

Permitam que eu denuncie, então. Nós médicos ainda padecemos do cacoete cartesiano de três séculos atrás, “acreditamos” (compartimentalizamos) que existem problemas mentais e problemas orgânicos (biológicos). [Aliás, toda a medicina se encontra atualmente compartimentalizada: os olhos não se comunicam com os rins, o coração não fala mais com o fígado, as articulações odeiam os ossos e o cérebro só conversa com a mente de vez em quando, e olhe lá!] Por isso sempre repetimos a ingênua questão: “Este paciente sofre de um problema mental ou físico?”. E nos alarmamos nas emergências clínicas: “Aqui não tratamos problemas mentais!”. E nos alarmamos nos hospícios: “Aqui não temos estrutura para lidar com quadros clínicos orgânicos moderados ou graves, como insuficiência cardíaca descompensada!”. Então fica uma pergunta: E um esquizofrênico descompensado com insuficiência cardíaca descompensada será atendido onde? No Hospital das Clínicas da USP? E um histriônico dissociado e com asma grave? E um paciente que apresente ao mesmo tempo uma depressão psicótica e uma insuficiência renal aguda, morrerá por causa de Decartes? Não existe corpo apartado de mente, existem indivíduos que podem padecer de transtornos e doenças.


A imaginação salta quando me vejo lidar com temas tão apaixonantes. E logo me vem alguma narrativa dramática que exemplifique realidades estéticas como essa da loucura mendicante de homens transformados em refugiados urbanos.

Lembro da senhora de setenta e cinco anos, Carina Bispo, mãe do gigantesco esquizofrênico ex-engenheiro químico, Glisérgio Bispo. Eles pertencem a uma classe média mais modesta e portadora de casa própria. A primeira pensionista e o segundo aposentado por invalidez. Antigamente, quando existiam hospícios e quando Glisérgio entrava em crise, Dona Carina contratava dois entregadores de água mineral e levava seu filho para internar por umas quatro semanas. Todo ano, uma ou duas vezes ele entrava em crise.

Mas agora que quase todos os manicômios fecharam, ficou difícil internar Glisérgio. Quando está em crise, ele pensa que sua mãe foi substituída por uma senhora muito parecida que lhe persegue para lhe envenenar, de modo que herdará a casa e ninguém desconfiará de nada. Fica agressivo com Carina. Esta preparou-lhe um quarto forte com grades em sua casa onde internaria Glisérgio por conta própria, mas logo se viu ameaçada pelos evangélicos e pelas assistentes sociais do CAPs de seu bairro: “Se o prender aí nós a denunciaremos ao ministério público!”. Então mais nada restou a Dona Carina, senão expulsar Glisérgio de sua casa com seu exército de entregadores de água mineral. E gradeou a entrada da casa, e ficava lá de cima da varanda conversando com ele: “Se você tomar o remédio ficará bom dessas idéias, aí eu te deixo entrar aqui. Tome o remédio meu filho!”

Mas Glisérgio, do vestíbulo gritava: “Sua assassina filha da puta! Você quer me envenenar! Você matou minha mãe. Você não é Dona Carina. Você se apropriou dessa casa nossa!”. Dona Carina, segura atrás de suas grades, estica o braço para ofertar alimentos e medicamentos ao pornofônico Glisérgio mendicante, que passou a habitar a calçada que fica em frente a sua própria casa. Dona Carina até mandou estender um toldo de sua casa por sobre a calçada para tentar protegê-lo da chuva e do sol. Mas quando este permanece muito tempo a gritar em frente a sua casa, Dona Carina, para não ficar tão falada na vizinhança, enche um balde de água gelada, pinga uma gotinhas de alfazema, e joga em cima de Glisérgio.
















GESTOS E SONS NAS RUAS DO COMÉRCIO DE SALVADOR-BA



Por:. Patricia Smith Galvão

Analista Universitária da UNEB; Graduada em Comunicação Social; Especialista em Gestão Pública Governamental; Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Atua também enquanto membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Cidade e Democracia: sociabilidades, representações e movimentos sociais” – Centro de Recursos Humanos – CRH/UFBA.


Amolar: gesto preciso, inumeramente repetido. Pele morna a laçar, envolver e manipular o metal frio – já sem talhe – a afiar-se outra vez. Ir contra a natureza das coisas modernas, cujo descarte rápido, impiedoso - traduzido pelas poucas chances dadas à utilidade plena e à duração - é regra predominante.
“Mas a palavra ‘gesto’ aqui é enganosa. Deveríamos encontrar um termo que englobasse tanto os movimentos do corpo como os do espírito” (GIARD, 1996: 269). São, destarte, gestos aprendidos de tanto que foram observados e repetidos, realizados insistentemente, até que se pudesse executar a tarefa com satisfação. É desta reprodução quase indefinida que nos conta o amolador: “... daí depois de um certo tempo eu comecei a praticar em casa. Pegava uns alicates velhos, ia praticando. ... depois eu vim pra aqui e comecei a amolar tesoura e fui desenvolvendo, com muita dificuldade, né? (ele sorri) ..., [...]. Pensei em desistir muitas vezes... Aí depois, com o tempo vai perdendo o medo...”.
Na narrativa acima, palavras do Sr. Emerson de Almeida que trabalha há onze anos na profissão de cutelaria. Para a oferta do serviço, localiza-se no bairro do Comércio da cidade de Salvador (Ba), próximo à Praça da Inglaterra. Emerson é filho do Sr. Tiotônio, amolador já aposentado, conhecido como o “pioneiro” daquele ponto. Seu Tiotônio teve 11 filhos: cinco mulheres e seis homens. Dos seus seis filhos homens, quatro seguiram a profissão do pai. Naquele mesmo lugar, além de Emerson, há mais dois dos seus irmãos, um tio e outros dois amoladores que não fazem parte da sua família. Dispõem-se sentados sob a marquise do antigo prédio dos Correios, em assentos de madeira construídos por eles mesmos, nos quais foram anexados esmeris - um pequeno motor que faz girar com força e rapidez a pedra de polimento - e uma gaveta onde guardam os demais instrumentos de trabalho.
Tem-se, portanto, na fala do amolador, a descrição de gestos que em sua natureza demonstram o exercício e a experiência incorporados nas “formas do fazer”, que representam um modo de ser, guardando memórias e histórias de resistência nem sempre reconhecidas. Medo?, disse ele. Medo de que?, pode-se perscrutar. E o que se revela não é a causa do medo, mas o que dele deriva, como a obstinação a favor de uma permanência que se pode pensar em sentido amplo e em perspectivas variadas, implicando em possibilidades de reelaboração do que está posto, produzido. Produtos e métodos que não deixaram de ser compostos e recompostos pelas novidades, tantas vezes influenciados pelas inovações - máquinas, utensílios, idéias recém surgidas - acomodadas em superposições e incorporadas pelo fazer antigo que, ao seu turno, como por um capricho, atravessa os dias e a horas do passado, mantendo-se no tempo presente. Inventos estes que economizam os gestos, as práticas, os sons... e que guardam em si perigo iminente de virem a economizar também, ou mesmo diluir, o indivíduo que realiza o serviço ou ação.
Por isso também não são suficientes o gesto de amolar ou as acomodações do corpo. Faz-se necessário um conjunto de disposições para além do aprendizado técnico, perito, bem como o desempenhar de uma atuação específica visando manter-se ali e realizar a atividade. É preciso construir ou adquirir os instrumentos de amolação, conquistar a sua clientela, fazer um serviço bem feito, ao gosto do freguês, com preço competitivo: “Eu mesmo sou assim, quando eu vou num local que sou bem atendido, que a pessoa faz o melhor, não usa de engano, eu volto, mas a partir do momento que eu vejo um engano... pra mim já perdeu a credibilidade; aí já perdeu, aí já caio fora. Eu creio que seja isso, né? ...” conforme narra o senhor Emerson. Ao final, volta à questão sobre a oferta do seu serviço e conclui: “Dois e cinqüenta, ... quer dizer..., pra elas... é caro, mas pra elas é uma coisa que tem utilidade, pra que?, faz várias unhas, mas, também, pô, você pagar dois e cinqüenta e não sair satisfeita que o seu material não está bom, às vezes até danificar, pesa, né? Pesa.”
Ademais da atuação, conta o reconhecimento. O fazer, embora imprescindível, é insuficiente. É preciso estar visto, identificado, considerado pelos demais enquanto conhecedor do que realiza. Circunstâncias para as quais o que vale é o olhar e o aceite do outro: “há 25 anos eu amolo meus alicates e os de minhas clientes aqui. Primeiro com o velho pai dele, depois com o irmão dele e agora com ele” – afirma dona Matildes, manicure de profissão e cliente antiga dos amoladores, referindo-se a Emerson. Dizia também da qualidade daquele serviço e da sua garantia: “(...) eu não amolo com outras pessoas, porque eu já tenho as pessoas certas, que eu já sei o jeito de amolar e se eu sair daqui e for pras bandas da Calçada..., e se aí não amola bem? Aí eu perdi meu tempo, perdi meu dinheiro... Então eu venho praqui, pra ele ou pro irmão dele...”.
Nesta mesma conversa a antiga cliente advertia sobre a dificuldade em dominar a arte da cutelaria: “não é só ter os instrumentos não..., pra saber fazer leva tempo, precisa de experiência”, numa afirmativa logo corroborada pelo próprio Emerson, também preocupado em explicar o seu temor quanto a não indicar o trabalho de outro amolador a um cliente seu, sentindo-se responsável pela qualidade do serviço e com a satisfação dos seus fregueses.
Para um bom atendimento é preciso realizar o cálculo sobre o andamento do serviço a ser prestado, período entre o acolhimento das solicitações de um e outro cliente, o que requer perícia de quem realiza o ofício posto que a qualidade do trabalho sofre implicações das mínimas frações de horas que os fregueses dispõem àquela demanda. Solicita também, e, portanto, certa compreensão, a partir de critérios subjetivos, da forma que o outro compromete o seu próprio tempo. Há ainda aqueles que preferem entregar seus alicates para pegarem depois, encomendando o reparo no intuito de aproveitarem os minutos na execução de demais atividades ou no suprimento de demandas outras a serem providas por serviços ou produtos oferecidos em abundância nas ruas do Comércio.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Condenados do Sistema: Pobreza Urbana em Salvador-BA

por: Antonio Mateus de Carvalho Soares

informe: http://lattes.cnpq.br/5592333054837843

site:http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/




A metrópole soteropolitana cresce a cada instante – o percentual de urbanização avança de 96,6% em 1991, para 98,4% em 2000[1]. Em concomitância a este processo, observa-se a consolidação de um complexo quadro de periferização e empobrecimento urbano. Salvador, terceiro aglomerado populacional do país, é periferia do sistema capitalista no Brasil e possui uma urbanização, marcada por um “padrão periférico[2]” obediente às lógicas do capital e às investidas das forças imobiliárias. O adjetivo periférico aqui empregado se legitima não apenas por Salvador se localizar no nordeste brasileiro, fora do eixo centro-sul, ou por não possuir um complexo econômico-industrial como São Paulo e Rio de Janeiro, mas por guardar expressivos índices de pobreza que se materializam em seu tecido urbano e na própria fisionomia de seus habitantes:



(·) Entre as 12 principais capitais do Brasil, Salvador ocupa a 8ª. posição em IDH [Índice de Desenvolvimento Humanos]. Nas análises sobre o ICV [Índice de Condições de vida], a oscilação da variável trabalho entre as décadas de 80 e 90, foi de 0,592 para 0,452, em decorrência do aumento do desemprego de 5,5% para 16,3% e da diminuição do número de empregados com carteira assinada.

(.) O salário médio na capital baiana diminuiu de R$ 322,00 para R$ 252,88, elevando o índice de pobreza de 0,06 para 0,1. O número de pobres na cidade aumentou de 26,9% para 33,6% ( Pesquisa do PNUD/ONU – 2004).

(·) Em 2004, o PIB baiano cresceu 9,9% enquanto, para o Brasil, essa taxa foi de 4,9%.No primeiro semestre de 2005, o PIB da Bahia imprimiu bons resultados, registrando uma expansão de 3,6% do PIB em relação ao mesmo período do ano anterior. O Estado da Bahia participa, com aproximadamente 56% das exportações da Região Nordeste. [Mensagem, no. 83/2005. Diário Oficial do Estado, em 15 e 16.10.2005][3].

(·) A população de Salvador é de 2.672.360 hab., o déficit habitacional é de 144. 767 e com 67.443 moradias em áreas de favela ( IBGE, 2005).Em 2003, Salvador constituía a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país , atrás apenas de Recife ( 31,8%) e de Fortaleza ( 36,0 %), conforme dados da PNAD.

(· ) Os números são contundentes: em Salvador, há 3.809 moradores de rua; faltam casas para cerca de 100 mil famílias, enquanto em todo o Estado, 39.370 mutuários estão inadimplentes com o sistema financiador de habitação. (Jornal A Tarde, Salvador-Ba. 15/01/2006).

O trato com dados referentes à pobreza guarda em si um complexo cruzamento de variáveis que, quando mal interpretadas, podem gerar análises poucos precisas. Assim, para as necessidades deste estudo, daremos maior importância para tentativa de constituição de uma inteligibilidade para a pobreza enquanto fenômeno social e como ela se manifesta no tecido urbano de Salvador. É uma obviedade necessária se afirmar que Salvador guarda um dos maiores índices de pobreza e desigualdade social do país. Deste modo, dentro da amplitude dimensional que o fenômeno da pobreza urbana pode tomar, focalizaremos a pobreza de Salvador em suas interfaces com a segregação, periferização e exclusão social[4]. Dada a diversidade de figurações da pobreza, não é objetivo deste estudo o aprofundamento das formas de mensurar, quantificar ou classifica - lá, mas percebê-la no seu modo particular de espacialização no tecido urbano de Salvador[5]. Como fenômeno social que se manifesta nas periferias e subúrbios dos grandes centros urbanos brasileiros, a pobreza e o pobre configuram-se como um produto de um poderoso esquema econômico de acumulação do capital.

A pobreza de Salvador e sua trajetória histórica de acúmulo de carências foi tema de discurso que cercou os movimentos sociais; foi justificativa para a busca de financiamentos internacionais; foi objeto de intervenção nas falaciosas propostas políticas, e ainda, campo especial de pesquisa do discurso sociológico e/ou técnico. A pobreza e seus índices se transformaram nas últimas décadas em palavras legitimadoras da necessidade de reafirmação e de luta pelos direitos sociais, pela igualdade e justiça.

Segundo Serge Paugam (2003, p. 64), “nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde, igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado”. O conceito de indivíduo pobre está associado ao de “fracassado socialmente” (individualização e culpabilização da pobreza), de excluído por não ter acesso em termos espaciais e temporais à cidade e seus benefícios, às mercadorias e serviços, à tecnologia, ao conhecimento etc. A questão da pobreza remete também à exclusão urbana e à construção cotidiana de um desequilíbrio social que se desdobra em privação de renda estável, desclassificação profissional e social, na falta de acesso aos serviços básicos etc. A pobreza em seu quadro de “despossessões” não possui impacto apenas econômico, mas também subjetivo, social e político.

A pobreza como terminologia que indica uma situação social vai instituindo seu significado em paralelo à conformação do direito à cidadania. Sua discussão supõe igualmente a dimensão da cidadania e a luta pelo acesso aos direitos básicos. Para Anete Ivo e Ilse Scherer– Warren (2004, p. 13-15) a questão da pobreza como efeito da desigualdade econômica e social, aparece, então, como questão política, já que interfere sobre as condições da justiça redistributiva. Esta afirmação nos leva a montar uma equação reflexiva entre: reprodução da pobreza ↔ produção da exclusão ↔ cidadania ↔ justiça social.

O Estado capturado é utilizado como o próprio instrumento para a reprodução e gestão da pobreza, situação que aumenta a exclusão e gera uma desqualificação social, que se manifestou nas cidades brasileiras com força implacável no processo de urbanização, criando um conjunto de precariedades que submetem as populações de baixa renda a um cenário de segregação e “despossessões” que aniquilam a cidadania e o acesso aos direitos básicos de sobrevivência: saúde, educação, moradia, emprego etc. Conforme Carvalho e Codes (2006), a pobreza e a precariedade das condições de subsistência são determinadas pelas condições de trabalho e renda; a pobreza não pode ser analisada de forma dissociada de fatores como o perfil educacional e os processos de segregação socioespacial e segmentação urbana.

A pobreza e os pobres passam a ser o foco da atenção de projetos sociais como grupo experimental para os dispositivos de poder[6], e como mão-de-obra barata e descartável a ser utilizada no processo de produção, reprodução e reestruturação do capital em suas modalidades de financeirização. A pobreza estrutural de nossos dias é observada, medida, estudada, dimensionada, avaliada, gerida, administrada, mas não se vislumbra a sua erradicação. A pobreza contemporânea, sob os ditames de um capital financeirizado e “molecular-digital”[7], parece se transformar em uma situação mantida pela lógica neoliberal, que coisifica e monetariza a vida. Desta forma, as reflexões sobre a pobreza devem se pautar em questionamentos: o que é a pobreza? para que servem os pobres? o que fazer dos pobres? o que é direito? o que é cidadania?

O pobre é aquele que tem de provar o tempo todo, se fazer ver e reconhecer a si próprio e à sociedade, a sua própria respeitabilidade num mundo em que os salários insuficientes, a moradia precária, o subemprego e o desemprego periódico solapam suas condições de possibilidade. Nesse caso, seria possível dizer que a condição de pobreza se traduz na experiência de uma liminaridade real ou virtual entre a ordem e a desordem, experiência feita no jogo ambivalente de identificações e diferenciações, elaborada entre a percepção de uma condição comum de privação que dilui perigosamente as fronteiras entre uns e outros e a construção de um universo moral no qual homens e mulheres se reconhecem como sujeitos capazes de lidar com os azares da vida e de se distanciar, se diferenciar, dos que foram pegos pela maldição da pobreza. É nos sinais que trazem dessa liminaridade que as circunstâncias de vida são problematizadas, circunscrevendo-se o modo como identidades são construídas e reconhecidas. (TELLES, 1992, pp 120-121).

O pobre é figurado como um “despossuido” de direitos e de razões, faz parte de uma parcela majoritária da população que tem seu cotidiano marcado por diversas carências e privações. O pobre é vítima da pobreza e da falta de satisfação das necessidades humanas básicas – a pobreza de forma endêmica e naturalizada é uma violação dos direitos humanos. A pobreza, como desrespeito a direitos econômicos e sociais básicos de grupos e indivíduos, foi se constituindo como uma violação de direitos humanos; a pobreza e a marginalização das populações criam sérios obstáculos à realização dos direitos políticos e civis, na medida em que as privações enfraquecem a manutenção da vida social e dificultam a participação política.


Notas:.

[1] Cf. FERNANDES, Claudia Monteiro (2006). Condições Demográficas. In: CARVALHO, Ináia M..M & CORSO, Gilberto Pereira (Org). Como anda Salvador ? EDUFBA, Salvador, 2006, 185 p.
[2] Cf. (CARVALHO & PINHO.1996, p.36) [...] a lógica do capital caminha atrelada aos interesses imobiliários estimulando a conformação do “padrão periférico” da urbanização, provocando a expansão desigual do tecido urbano.
[3] Declarações do Governo do Estado sobre o aumento do PIB e qualidade de vida parecem confrontar os dados do PNUD/ONU em relação ao aumento da pobreza. Estas declarações podem indicar que a elevação do PIB estadual não guarda nenhuma relação com a distribuição de renda e/ou com a diminuição da pobreza na Bahia.
[4] A relação entre Estado como mantenedor da relação exclusão-inclusiva, assim como o próprio conceito de exclusão associada ao capital neo-liberal será realizada no 4ª. capitulo deste trabalho. [5] Cf. (CODES, 2004, p. 129/130) As tentativas de mensuração da pobreza baseiam-se na utilização de dados estatísticos, uma vez que a análise quantitativa é capaz de oferecer uma visão ampla e sistêmica dessa questão social, prestando-se bem à idéia de servir de orientação para o desenvolvimento de ações anti-pobreza. [...] A mensuração da pobreza predominantes no campo das Ciências Sociais, baseadas em dados estatísticos, são pautadas em uma análise da satisfação das Necessidades Básicas e o estabelecimento das Linhas de Pobreza. [...] (CODES apud SALAMA;DESTREMAU, 2004) Medir a pobreza significa “perceber e contar os pobres, e tentar avaliar a natureza e a gravidade do problema que eles colocam, no que refere a critérios julgados pertinentes.
[6] Cf. Michel Focault (2003) O dispositivo de poder, conforme, gerencia a vida e a coloca a disposição de um poder maior que se explicita através de sofisticadas tecnologias de governo, tendo como uma das conseqüências uma metamorfose da economia social da filantropia em direção à atual administração massiva da pobreza ou gestão da exclusão social.
[7] Cf. SANTOS, Laymert, G. dos. In: Relatório Final do Projeto Temático Fapesp (2003-2004): Cidadania e Democracia: o pensamento nas rupturas da politica. Subprojeto 9 : Biotecnologia, biodiversidade : passagem para o molecular global. CENEDIC, FFLCH/USP, São Paulo, 2005.

Olhar Metodológico - Sociólogo Gey Espinheira


Excertos do Módulo "A ficção do Real" (2007)

Autoria:. Gey Espinheira

Informes:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Uma indagação que se torna, por si mesma, uma pergunta absoluta no sentido sartreano. Por que escrever? Não se responde a algo que ao questionar propõe uma afirmação, como se estivesse a dizer: por que não escrever? Uma naturalização de algo que, por ser uma das dimensões humanas, se expressa espontaneamente, ou autenticamente, para usar um vocabulário caro ao existencialismo.
Orham Pamuk, que recebeu o prêmio Nobel de literatura de 2006, fala sobre por que e para quem escrever. Ele foi acusado de receber o prêmio como uma estratégia européia de contentar um país do Oriente, islamizado, prestes a fazer parte da União Européia, a Turquia. Pamuk toca em um tema tabu: o massacre de armênios e curdos em seu país e traz à tona a questão das diferenças étnicas e da intolerância. Então, por que escrever? Para quem escrever? Responde Pamuk (Folha de São Paulo, Ilustrada, E3, edição 14 de outubro 2006):
Os escritores escrevem para um leitor ideal, para as pessoas que amam, para eles mesmos ou para ninguém... Os escritores de hoje também escrevem para aqueles que os lêem... Não existe um leitor ideal, livre de toda a estreiteza mental e de todas as proibições sociais ou mitos nacionais, assim como não existe o romancista ideal. Mas a busca de um escritor pelo leitor ideal começa quando o romancista imagina que ele exista e passa a escrever livros o tendo em mente.

O ato de escrever é engajado ou desengajado, dependendo de que escrita se trate; há uma razão para se escrever quando o que se escreve é poesia; assim como há razões quando se trata de prosa; e em ambos os casos uma diferença é estabelecida, porque as linguagens não são as mesmas, ainda que a língua o seja, assim como os instrumentos, as palavras, também são as mesmas, mas funcionam diferentemente na prosa e na poesia e manejo de um estilo e o de outro depende também da razão existencial do que se faz.
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser.
Segundo Sartre, a poesia e a prosa se diferenciam no uso das palavras, já que na prosa as palavras são signos, enquanto que na poesia elas têm um outro significado, aqui são transparentes, enquanto que na prosa elas traduzem a realidade das coisas que representam, que nomeiam. Escrever sobre o real é aproximar-se ao máximo da realidade e representá-la através dos signos, das palavras, formulando o discurso que desvela algo. Para Heidegger (2002), o desencobrimento, levantar o véu que vela. Para Sartre, o desvelamento de algo que está oculto e que deve ser mostrado. O mesmo para Bachelard (1988), por trás das aparências algo oculto, uma latência que revela algo que propõe outros significados e relações para além daqueles que a máscara esconde e simultaneamente revela.
Pensemos em Aldous Huxley (1986, p 1), quando nos fala na arte e na realidade, mostrando que a realidade não faz sentido, não tem estilo, diferentemente da arte, mais especificamente da literatura. A realidade é o campo da prosa; a transcendência o da poesia. Se há alguma imbricação nos estilos, não pode haver predomínio de um sobre o outro, sob pena de não ser nem uma coisa nem outra.
Enquanto que a “existência” é, como nos ensinou Aldous Huxley, “sempre um infernal emaranhado de coisas”:

A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas, e cada uma dessas coisas é simultaneamente Thurber e Miguel Ângelo, é ao mesmo tempo Mickey Spillane e Thomas Kempis. O critério da realidade é a sua congruência intrínseca.


Seguindo os passos de Heidegger (2003, p. 12), em seu estudo sobre Tralk, a poética se explicita a nos evocar e convocar para o sentido do mundo em toda sua expressão:
Alguns viandantes da errância
chegam até a porta por veredas escuras.
Da seiva fria da terra
Surge dourada a árvore dos dons.

Vamos ver certas diferenças entre a arte e a realidade. Para Sartre (1989, p. 40), “a obra de arte não tem uma finalidade; nisso estamos de acordo com Kant. Mas é porque ela é uma finalidade em si mesma...” “Kant crê que primeiro a obra existe de fato e só depois é vista. No entanto, a obra só existe quando a vemos; ela é primeiramente puro apelo, pura exigência de existir”.
A liberdade de escrever está ligada ao reconhecimento da liberdade dos outros. Sartre (ibid., p. 43) nos diz que “quando mais experimentamos a nossa liberdade mais reconhecemos a do outro; quanto mais ele exige de nós, mais exigimos dele”. E, por fim, se conclui que a arte é uma “cerimônia do dom e só o dom opera uma metamorfose” A generosidade, essa confiança de si, esse se dar à liberdade do outro, “assim a minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro” (p. 44).
Diante da produção literária, e artística em geral poderíamos levantar a questão da pulsão humana pela criação. Talvez respondêssemos com a simplicidade da resposta: somos humanos; e vamos mais adiante pensar na pergunta que também poderia ser inquietante: por que escrever?
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser. Eco nos dirá, mais adiante, o quanto o leitor é importante no diálogo com a obra; o quanto ele pode ser uma leitor empírico ou um leitor modelo. Os nossos sentidos convocados pela literatura, nos comunicam à razão e, então, sentimos a completude do que estamos fazendo quando lemos. Autores como Eco, Manguel e Calvino, passando por Moreiras (2001) e Morse (1990), falam da literatura com intimidade, como Antonio Cândido, sem, no entanto, essa passagem direta à realidade da vida.
Aldous Huxley, em diversos momentos em sua obra literária faz referência ao mundo ordenado da ficção, conquanto aquele da existência das pessoas “reais” na vida cotidiana apareceria como fragmentado. Diz ele em O gênio e a deusa: “A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”

Indicação de Leitura: Educação para uma nova sociedade


Autoria:. Gey Espinheira
Informe:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Pensar a educação é ir além das técnicas e mesmo das ciências. Já estou cansado – e acredito que muita gente mais – de pensar a educação como razão instrumental e atrelá-la ao mercado de trabalho, como se o destino do ser humano fosse o de transformar-se em trabalhador especializado, ou um faz-de-tudo, pau-para-toda-obra, ou ainda um generalista qualificado.
Nos últimos poucos anos as mudanças que se processaram na sociedade foram tão significativas que podemos dizer que ultrapassamos a linha da tradição e no inserimos no torvelinho da sociedade de mudanças e de descontinuidades que nos ultrapassam infinitamente, para usar aqui uma expressão dos paradoxos de Latour (1994).
Saímos, por exemplo, do paradigma da sociedade de economia para o de sociedade de tecnologia. O reconhecimento de que não foi o trabalho o responsável pelo aumento da produtividade e sim a tecnologia, o próprio trabalho passa a ser questionado como o lugar e o destino do ser humano, embora não se saiba o que fazer com este ser em estado de não-trabalho, como um ser improdutivo, intoleravelmente dependente.
Decididamente a educação vinculou-se ao trabalho e este se constituiu na melhor forma de controle social e de demarcação do espaço humano nas sociedades ocidentais. Freud, em seu Mal-estar da civilização, reconhece este enredo no qual os seres humanos foram levados a representar, e nos diz que “nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão fortemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana”. (1997 p. 29). Para Marx, o trabalho coletivo constrói a humanidade e para ser exercido exige conhecimento dos usos dos instrumentos, da tecnologia, e a sua forma de produzir, portanto, produz também a organização da sociedade e tudo mais que a caracteriza.
A educação é o meio para conhecer e agir na sociedade do trabalho; mas, estamos ainda na sociedade do trabalho? Já não é hora de pensar a educação para além do trabalho? Não terá o trabalho mudado? A estas questões não quero responder recorrendo à utopia da sociedade do ócio, mas a que se expande em modos de fazer, criar e inventar que, como na letra da música de Noel Rosa e Vadico: “fazer samba é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio”.
Não desejo entrar em considerações, portanto, sobre a sociedade do ócio ou qualquer coisa que o valha neste sentido, apenas dizer que a educação instrumental não encontrará campos largos de trabalho e emprego como se acreditava, ou como se alardeia hoje com a superoferta de cursos de toda natureza. Bourdieu (1996, p. 38 ss.) nos alertava que a educação, para além do conhecimento, concede diplomas, titula as pessoas, diferenciando-as socialmente e capacitando a acessos que outros, sem a titulação, estão impedidos. A educação joga um jogo social importante na distinção entre as pessoas e grupos sociais “pelo direito de usar um nome, um título; tem, portanto, outras funções para além do conhecer”.
O ser humano é um animal sem especialização como tal, por isso mesmo sua grande tarefa é a de constituir-se humanamente, isto é, de tornar-se o que não o é pela própria natureza; transcender-se em sua imanência. O processo para chegar a este objetivo é, inquestionavelmente, o educacional. Ninguém se humaniza sozinho, nos diz Berger (1972, p.114) “Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade”. Precisamos da sociedade para nos respaldar, e poderíamos dizer: precisamos da educação para nos fazer gente.
Quem somos nós no conjunto da sociedade? A que nos destinamos? Roland Corbisier (1978, p.59) citando Ortega e Gasset, nos diz que somos um projeto, que nos realizamos como projeto, já que não estamos acabados e programados.
Quando falamos em educação estamos pronunciando uma palavra enigmática, pois todos a entendem, mas nem só não sabemos do que estamos falando, nem os que nos ouvem sabem do que falamos. Rancière (1996) diria que este é um exemplo puro de desentendimento. E estamos nos desentendendo há muito tempo.
Quando falamos em paradoxo estamos nos referindo a algo que se apresenta como contrário, ou uma contraposição àquilo que julgamos ser o esperado. Assim, quando o professor se refere ao valor social da educação e, ao mesmo tempo, ao seu desprestígio no mercado de trabalho, está diante de um paradoxo e, certamente, também de um dilema e de um desafio, mas ainda em face de uma obviedade: o seu valor no mercado da educação de massa.
Por dilema podemos considerar a necessidade de uma decisão diante de alternativas que são opostas e cada uma delas insatisfatória, mas que é preciso chegar a uma conclusão ou a uma saída.
Pensemos, portanto, em paradoxos e depois nos dilemas que eles nos propõem:
1. O valor social da educação não é correspondido com a mesma ênfase nas relações de trabalho no campo educacional;
2. A baixa-estima do professor ao confessar seu baixo rendimento e suas precárias condições de trabalho expressa a sua fragilidade no âmbito do próprio campo educacional;
3. Ao comparar-se em dedicação e estudos a outros profissionais que obtêm sucesso sem o requerimento do empenho intelectual (artista, jogador de futebol, piloto de fórmula 1 etc.) põe em jogo a desvalorização social da educação para os próprios estudantes que são incentivados a “estudar para vencer na vida”;
4. A padronização da educação de massa é também a padronização (homogeneização) social, enquanto que o discurso da educação é o da distinção social, da instalação da competência para o desempenho competitivo na sociedade;
5. O predomínio da “razão instrumental” no processo educacional tende a anular a atenção à subjetividade do sujeito, tornando-o um ser indistinto diante de uma missão a que está obrigado a realizar sem ter a devida consciência do seu sentido e do seu significado;
6. A educação abstraída de significado torna-se mais um fardo do que algo reconhecido pelo estudante, também abs-traído, o ex-traido, para a realização de seu próprio projeto de formação social, de constituição de um ser repleto de possibilidades;
7. A má qualidade da educação leva ao desencanto e a freqüência à escola torna-se apenas uma obrigação social de “estar na escola”, o que descompromete o estudante com as relações necessárias decorrentes dos papéis em jogo;
8. Sobrecarregado e mal remunerado, o professor se desencanta e amesquinha seu próprio papel social;
9. O autoritarismo e a hipocrisia do campo educacional estabelece um chão de relações falsas, moralistas, que se torna movediço para todos os que se envolvem nesse campo;
10. A educação, embora absolutamente necessária, já não é condição – para a maioria – de ascensão social, garantia de trabalho, emprego e renda, nem de distinção social.

Diante desses paradoxos – que não se esgotam aqui – é preciso pensar nos dilemas que eles propõem e nos desafios que professores e estudantes têm pela frente para enfrentá-los se quiserem mudar o rumo da educação na proposição de uma nova sociedade. O principal dilema diz respeito ao fato de que só uma nova sociedade pode propor uma nova educação, e que a educação é o mecanismo, como processo, de construção dessa nova sociedade.